Separados por uma IA e 500 anos

Montagem Digital/Karla Vidal.

A história dos rinocerontes que nunca existiram

Em 1515, Albrecht Dürer, um dos maiores mestres do Renascimento alemão, criou uma das imagens mais icônicas da história da arte: a xilogravura de um rinoceronte indiano. O curioso é que Dürer nunca viu o animal. A representação foi baseada em descrições textuais e relatos de terceiros. Mais de 500 anos depois, a inteligência artificial (IA) repete um processo semelhante: gera imagens a partir de prompts com descrições escritas, combinando dados por vezes imprecisos, incompletos ou até mesmo fantásticos, entendendo fantástico como algo que só existe no campo da imaginação.

Como alguém que já pesquisou tanto a história da obra de Dürer quanto os processos de geração de imagens com IA, escrevi esse texto a partir de uma nova exploração, dessa vez buscando as semelhanças entre o método de Dürer e os algoritmos de IA. Busquei analisar como ambos podem ajudar a perpetuar desinformação visual. Além disso, tentei entender os motivos pelos quais a gravura de Dürer foi aceita como verdade por tanto tempo, apesar de seus erros anatômicos.

Para explorar, aprofundei as pesquisas sobre a descrição utilizada por Dürer e utilizei ferramentas de geração de imagens com inteligência artificial (Adobe Firefly, Leonardo.AI e Freepik Pikaso e Gemini) para reproduzir a gravura original também a partir de uma descrição textual. O prompt foi escrito a partir da descrição que inspirou Dürer a criar o famoso rinoceronte de 1515. Comparei os resultados com a gravura original e são eles que gostaria de compartilhar com você que está lendo este artigo.

Arte, erro, desinformação ou todas as alternativas?

A gravura original de Dürer retrata um rinoceronte com características fantásticas: uma "armadura" escamosa, um segundo chifre nas costas e patas que lembram as de um réptil. Esses detalhes não correspondem à realidade — o rinoceronte indiano tem pele grossa e enrugada, mas não possui placas rígidas ou chifres extras.

Reprodução da gravura completa original. Domínio Público/Wikimedia Commons.


Apesar dos erros, a imagem de Dürer tornou-se a referência visual do animal, influenciando naturalistas e a cultura europeia por dois séculos. Isso mesmo, dois séculos! A imagem incorreta de Dürer persistiu até o século XVIII, quando os europeus tiveram um contato mais preciso com a aparência real de um rinoceronte. Como nos faz refletir o artigo de Roberto de Andrade Martins (2014), esse pode ser um caso clássico de desinformação visual: uma representação imprecisa que foi aceita como verdade devido a sua ampla disseminação. Na pesquisa intitulada “O rinoceronte de Dürer e suas lições para a historiografia da ciência”, Martins chega a mencionar uma certa resistência que houve na época para corrigir a representação equivocada do artista.

Para testar a analogia entre o processo de Dürer e a IA, formulei um prompt baseado nas descrições que o inspiraram. Tomei como base informações presentes nos verbetes da Wikipedia sobre a obra e também as informações presentes na pesquisa de Roberto de Andrade Martins. O resultado foi o prompt que reproduzo a seguir:

"Lithography of a full-body Indian rhinoceros profile, with a heavy and robust appearance, folded skin, and detailed wrinkles that convey a textured sensation. The horn is long and slightly curved upward, and there is armor-like scaling around the animal's body. The right front leg is lifted off the ground, while the other three are firmly planted. A notable feature is the presence of a thick plate covering the rhinoceros' back, with an appearance similar to that of medieval armor."

Os resultados gerados pela inteligência artificial apresentaram semelhanças com a gravura original de Dürer, inclusive repetindo detalhes inexistentes na realidade, como a suposta armadura na pele e até as escamas.

Adobe Firefly (2024).

Leonardo.AI (2024).

Freepik Pikasso (2024).

Gemini (2024).

Dürer influencer e o poder de uma mensagem dita muitas vezes

A comparação entre o processo criativo de Albrecht Dürer e os sistemas atuais de inteligência artificial revelaram alguns paralelos que valem a pena ser destacados. No século XVI, Dürer baseou-se em relatos indiretos e descrições imprecisas para criar sua famosa gravura do rinoceronte, da mesma forma que as IAs atuais utilizam bancos de dados que podem conter vieses, erros ou representações fantasiosas ー incluindo, ironicamente, a própria obra de Dürer. Esse fenômeno de gerar a partir de fontes não tão confiáveis reforça um movimento de desinformação que aparentemente se repete, mesmo com o avançar dos séculos e das tecnologias.

O problema pode se agravar quando analisamos a partir do que vou chamar aqui de "broadcasting do equívoco". A imagem de Dürer, reproduzida inúmera vezes, cristalizou uma visão distorcida do rinoceronte na cultura ocidental. Da mesma maneira, quando sistemas de IA são treinados em conjuntos de dados que incluem informações imprecisas, eles acabam perpetuando equívocos, criando um efeito eco de desinformação. Essa dinâmica é particularmente perigosa quando consideramos a falta de contexto crítico: no século XVI poucos questionaram a precisão da gravura por ser a única referência disponível, assim como hoje imagens geradas por IA são frequentemente aceitas como "reais" sem verificação, especialmente no ambiente acelerado das redes sociais.

Mas, por que a gravura de Dürer foi aceita sem questionamentos? A aceitação acrítica da gravura de Dürer como representação fiel de um rinoceronte pode ser compreendida através de diversos fatores históricos e culturais interligados. Em primeiro lugar, a incontestável autoridade do artista pode ter desempenhado papel fundamental. Dürer já era reconhecido como mestre da precisão artística, celebrado por seus meticulosos estudos anatômicos e pelo extraordinário detalhismo de suas obras. Essa reputação impecável fez com que seu rinoceronte fosse imediatamente aceito como representação "cientificamente correta", mesmo carecendo de base na realidade biológica do animal, o que coloca o artista num papel semelhante ao que vemos hoje ocupado pelos influencers na internet.

Reprodução de autorretrato de Albrecht Dürer. Domínio Público/Wikimedia Commons.
Dürer influencer. Remix gerado com auxílio de inteligência artificial.

A escassez de referências visuais confiáveis na Europa do século XVI também contribuiu significativamente para essa aceitação. Num contexto onde pouquíssimas pessoas tinham tido a oportunidade de observar um rinoceronte vivo, a gravura de Dürer preencheu um vazio informacional, tornando-se a principal ー pra não dizer a única ー fonte visual disponível sobre o animal. Esse fenômeno foi ainda mais intensificado pelo contexto cultural da época que via o rinoceronte como criatura mítica, frequentemente associada aos bestiários medievais e ao imaginário do exótico. A representação do animal “usando armadura” criada por Dürer, com sua aparência quase fantástica, reforçava essas expectativas quase como um viés de confirmação. Isso também tem acontecido atualmente com imagens geradas com inteligência artificial que circulam pelas redes exibindo criaturas que nunca existiram.

A tecnologia de reprodução disponível na época, a xilogravura, desempenhou um papel importante na consolidação da imagem do rinoceronte como verdade incontestável. Por permitir reproduções relativamente acessíveis, a representação de Dürer se espalhou rapidamente em livros pela Europa, tornando-se a versão "oficial" do rinoceronte através do simples efeito de ubiquidade, estava em todos os lugares ao mesmo tempo. Quanto mais a imagem circulava e era reproduzida, mais difícil se tornava questionar sua precisão, criando um ciclo autorreforçador de validação.

Por fim, a completa ausência de mecanismos institucionalizados de verificação científica no século XVI criou o ambiente perfeito para essa consolidação, numa época em que arte e ciência ainda mantinham fronteiras fluidas, sem os rigores metodológicos e as estruturas de validação que surgiriam posteriormente, representações artísticas podiam facilmente adquirir status de verdade científica, especialmente quando vindas de figuras consagradas como Dürer.

As conclusões dessa aventura

O paralelo entre Dürer e a IA revela um problema antigo em nova roupagem: a facilidade com que representações imprecisas se tornam "verdades" visuais quando respaldadas por autoridade, escassez de alternativas ou apelo cultural. Se no passado os erros de Dürer dominaram por séculos, hoje a IA pode espalhar desinformação em escala global em questão de segundos.

O alerta é claro: precisamos tratar imagens geradas por IA com o mesmo ceticismo que hoje aplicamos à gravura de Dürer. Isso inclui questionar fontes e identificar em qual conjunto de dados a IA opera, analisar o contexto e buscar entender se a imagem é uma interpretação ou um registro fiel e verificar a informação, buscando contrastar com fontes confiáveis.

Assim como Dürer não era um biólogo, a IA não é uma testemunha ocular — é uma ferramenta que reflete e às vezes amplifica os limites de seus inputs. Cabe a nós, usuários e criadores, garantir que esses limites não se tornem novas verdades incontestáveis.

Quer compartilhar um caso de desinformação visual gerada por IA que chamou sua atenção? Escreva nos comentários e vamos interagir.

Referências

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